sábado, 20 de abril de 2013

Teatro/CRÍTICA


"Horses Hotel"


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O inferno não é o outro


Lionel Fischer



Em seu breve romance "Noites brancas", Dostoiévski escreveu uma frase que me marcou para sempre: "Era uma dessas noites que só nos acontecem quando somos jovens". Depois de lê-la, e ao longo de minha vida, sempre me perguntei o que será que só nos acontece quando somos jovens, jamais chegando a uma conclusão definitiva. No entanto, ao assistir "Horses Hotel", vislumbrei uma possibilidade de resposta: certas coisas só podem nos acontecer na juventude desde que determinadas por circunstâncias muito especiais.

No presente caso, três personagens dividem um pequeno quarto num hotel decadente. E ainda que exibindo personalidades diferentes, todos têm uma forte ligação com a arte e encaram a vida com uma mescla de ambição e desespero. Talvez não saibam exatamente o que fazer, mas têm absoluta certeza do que não querem. E o partilhar dessas indecisões, somada à disponibilidade de viver intensamente múltiplas experiências - dentre outras, afetivas e sexuais - contribui para criar um contexto em que o inferno não é o outro, pois o que muita vezes os difere é também o que os aproxima e estimula.

De autoria de Alex Cassal, "Horses Hotel" acaba de estrear no Oi Futuro Flamengo. Projeto idealizado por Ana Kutner, a peça chega à cena com direção de Alex Cassal e Clara Kutner, estando o elenco formado por Ana Kutner, Renato Linhares, Emanuel Aragão e Roberto Souza, este último atuando basicamente como guitarrista.

A ação se passa no fim da década de 70 e início dos anos 80. Músicas inspiradas no punk rock são tocadas, poemas são ditos, histórias passadas reveladas, com eventuais momentos de relação direta com a plateia. Um triângulo amoroso se estabelece, feito de delicadeza, tesão e cumplicidade, totalmente isento de qualquer resquício de vulgaridade. Um sentimento de pureza e integridade está presente em todas as situações vividas ou evocadas, por mais chocantes que possam se afigurar em um primeiro momento. E talvez por terem a coragem de viver tão intensamente os próprios impulsos nos sentimos totalmente cúmplices dos personagens, que demonstram que a pior coisa que pode nos acontecer é passar pela vida em branca nuvem e em plácido repouso adormecer

Quanto ao espetáculo, Alex Cassal e Clara Kutner impõem à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Sendo este não linear, fragmentado, com idas e voltas no tempo etc., a direção consegue transmitir todos os conteúdos em jogo valendo-se de marcações tão surpreendentes quanto criativas, algumas visando claramente trazer o público para o espetáculo e outras objetivando transformá-lo numa espécie de voyeur. Sem a menor dúvida, "Horses Hotel" é um dos melhores espetáculos da atual temporada, o mesmo aplicando-se ao texto, constituído de ótimos personagens, diálogos impregnados de humor, poesia e temas da mais alta pertinência.

No elenco, Ana Kutner exibe a melhor atuação de sua carreira, conseguindo materializar de forma brilhante todos os aspectos da personalidade conturbada, terna, sonhadora e feroz da personagem que interpreta, cabendo ainda registrar que, mesmo não sendo uma cantora no sentido óbvio do termo, quando canta o faz muito bem. E o mesmo brilho se faz presente nas maravilhosas performances de Renato Linhares e Emanuel Aragão, que também conseguem extrair o máximo potencial dos complexos personagens que encarnam, ressaltando que cantam muito bem e tocam guitarra e bateria com eficiência. No papel do guitarrista/baterista, Roberto Souza se ajusta completamente ao trio de atores, certamente pelo fato de ser também um ator.

Na equipe técnica, considero absolutamente irretocáveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos, essenciais para o êxito deste espetáculo imperdível - Amora Pêra e Paula Leal (direção musical). Alice Ripoll (direção de movimento), Antônio Medeiros (figurinos), Guga Feijó (cenografia), Renato Machado (iluminação) e Raul Taborda (projeto gráfico).

HORSES HOTEL - Texto de Alex Cassal. Direção de Cassal e Clara Kutner. Com Ana Kutner, Renato Linhares, Emanuel Aragão e Roberto Souza. Oi Futuro Flamengo. Quinta a domingo, 20h. 
   





   


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